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Em Vilarana a maré era senhora do tempo: embora o relógio da igreja de Nossa Senhora do Tempo ditasse as horas pelos ponteiros mal consertados pelo devoto Bibiano Ramos ou, às vezes, pelo eletricista Guitão Pereira. Havia um desacordo entre os dois tempos na vila que nem vila era.. O relógio da matriz marcava as horas do dia e da noite, lembrava a história do engenho Bem-Bom aonde o tal relógio veio parar importado, paresque, da Inglaterra antes de ser doado pelo falecido coronel Leopoldino Ribeiro à construção da dita igreja. Por outra parte, quem dava as horas da maré na varja do Curralpanena era saracura: três potes, três potes, três potes... quebraram um, quebraram um... Quando a maré quebrava na reponta das águas era saracura quem cuidava de avisar aos navegantes do rio
Não raro, o relógio de Vilarana estava atrasado ou quebrado. Como se aquelas engrenagens, paresque, da Cabala se retardassem da marcha do astro do dia. Ultimamente, a velha corrente puxada pela mão invisível da gravidade se rompia com mais frequência do que dantes e deixava desnorteados passageiros de igarités com viagem marcada pra cidade. A ferrugem herdada do engenho de fogo morto ia aos poucos findando o tempo de vida do relógio, então carecia Guitão dar tudo de seu invento para forjar novas peças e elos quebrados daquela corrente que parecia pender do infinito. Já o pessoal da beira parecia ter despertador certo com a vigilante saracura: nunca perdia a maré e o tempo da lua. Era caso de acreditar, como dizia Vovó Tapuia, este era o relógio que vigia no tempo da vela de jupati. Nunca atrasava nem adiantada e a corrente só se rompeu quando os brancos avezaram de levantar engenho e comprar escravo pra plantar canavial na varja. Com tal quizília com os padres e os índios da praia transferiu-se a freguesia pra dentro deste rio dos canaviais, deixando ao abandono a aldeia e a capela praiana: tristeza de Nossa Senhora do Tempo...
Certas noites de luar, em Vilarana, os moradores viam uma dama vestida de branco caminhando pela estrada que levava à aldeia das praias. Era, diz-que, Nossa Senhora em busca de sua antiga capela junto aos pescadores. Quando o dia amanhecia os devotos podiam ver sobre o altar da igreja a santa imagem com a barra de seu manto molhada pelo sereno e areia de praia nos pés. Tal prodígio era um desconforme espanto na vila que nem vila era!
O mistério habitava Vilarana, noves fora os encantados do fundo do rio e das matas do Curralpanema. Mamãe Adélia levou o filho a visitar o Senhor Morto na igreja na sexta-feira santa: malcomparado, era que nem a imagem do avô Afonso Galizio quando chegou em casa, de repente, metido dentro do caixão... A igreja em luto e as imagens cobertas de roxo, o pirralho queria saber onde Deus estava; a mãe dizia: “Ele está aqui”... Mas, onde? Que não via... Uma lâmpada encarnada acesa avisava que sim, Deus morava na igreja de Nossa Senhora do Tempo. Mas porém, o que Quinquinhas viu debaixo do altar-mor era o Senhor Morto estirado com o corpo coberto de chagas. Mamãe Adélia disse, “se ajoelhe e beije os pés do santo”... “Eu não!”. O protesto do menino pareceu acordar os santos do sono da eternidade. Saiu dali arrastado sob os ralhos maternos e foi se consolar com Vovó Tapuia. Durante as procissões pelas três únicas ruas de Vilarana debaixo de sol escaldante, respirando poeira com ar de estrume de vacas, cavalos e carneiros que andavam a solta, seguia a banda e o povo cantando “no céu, no céu, na santa glória um dia, co'mea mãe estarei...”. O relógio batia meio-dia e a gente entrava na igreja ofegante, trazia o sol preso nos cabelos e cara incendiada. A fome apertava: era ver se a maré deu peixe neste dia, graças a Deus o açaí já estava garantido no alguidar.
Vilarana
na estória geral do rio das amazonas, eis a vila que nem vila era: Vilarana do Curralpanema, a flor dos tijucos e aningais. Utopia posta à margem do limbo metafísico, onde a imaginação gosta de zombar da realidade e reinventar a paisagem da memória.
sábado, 9 de outubro de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
paisagem
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... ao contrário do nheengaíba que um dia foi o malvado guerrilheiro de emboscada armado de zarabatana feita de braço de paxiúba e setas de talo de patauá envenenadas de curabi contra a invasão da ilha, o viajante que passa ao largo a bordo de barco regatão vê a floresta, mas não encherga a árvore onde a jararaca esconde o mistério da morte. Muito menos esse forasteiro dá com a vista ao pobre ribeirinho a pescar camarões com matapi na beira, na boca do igarapé Mata Fome. O nome já diz tudo da precisão do homem que o batizou. Quanto mais - quem dera! - ele avistasse a vila que nem vila era e o sítio Terras-Caídas na terceira margem do rio Curralpanema: lugar que não existe no mapa. Antão, havera o tal viajante da paisagem invisível de ver, paresque, Vilarana surgir cheia de graça detrás da ponta do estirão dentre as sombras do açaizal na varja. O trapiche ao lado do estaleiro do Ponto Certo, o Fim do Mundo, a igreja e a intendência perto da cadeia; as três ruas coalhadas de pirralhos de canela tuíra, vacas, cavalos, porcos e cachorros... Pelas beiradas canta a saracura, "três potes, três potes, três potes... quebraram um, quebraram um"... Comadre Didi cabelo pixaim as mãos negras ligeiras tecendo paneiro como se faz uma lenda de talas de miriti e fantasia, sentada ao assoalho de juçaras em riba de troncos da barraca em palafita, dizendo ela ao compadre Manduquinha "sô homem, as águas já quebraram, saracura tá cantando...". O companheiro entendeu o que a mulher lhe queria dizer diretamente: tempo de tapagem de igarapé para dar o de comer aos barrigudinhos zolhudos. O caboco olhou ao velho pari ao canto da varanda, carecia esperar maré secar para ir ao mato tirar jupati e cipó... O tempo pintava o céu de cinzento, era chuva na certa. A gente do sítio via passar navio longe do Fim do Mundo, mas porém o pessoal de bordo não estava nem aí.
... ao contrário do nheengaíba que um dia foi o malvado guerrilheiro de emboscada armado de zarabatana feita de braço de paxiúba e setas de talo de patauá envenenadas de curabi contra a invasão da ilha, o viajante que passa ao largo a bordo de barco regatão vê a floresta, mas não encherga a árvore onde a jararaca esconde o mistério da morte. Muito menos esse forasteiro dá com a vista ao pobre ribeirinho a pescar camarões com matapi na beira, na boca do igarapé Mata Fome. O nome já diz tudo da precisão do homem que o batizou. Quanto mais - quem dera! - ele avistasse a vila que nem vila era e o sítio Terras-Caídas na terceira margem do rio Curralpanema: lugar que não existe no mapa. Antão, havera o tal viajante da paisagem invisível de ver, paresque, Vilarana surgir cheia de graça detrás da ponta do estirão dentre as sombras do açaizal na varja. O trapiche ao lado do estaleiro do Ponto Certo, o Fim do Mundo, a igreja e a intendência perto da cadeia; as três ruas coalhadas de pirralhos de canela tuíra, vacas, cavalos, porcos e cachorros... Pelas beiradas canta a saracura, "três potes, três potes, três potes... quebraram um, quebraram um"... Comadre Didi cabelo pixaim as mãos negras ligeiras tecendo paneiro como se faz uma lenda de talas de miriti e fantasia, sentada ao assoalho de juçaras em riba de troncos da barraca em palafita, dizendo ela ao compadre Manduquinha "sô homem, as águas já quebraram, saracura tá cantando...". O companheiro entendeu o que a mulher lhe queria dizer diretamente: tempo de tapagem de igarapé para dar o de comer aos barrigudinhos zolhudos. O caboco olhou ao velho pari ao canto da varanda, carecia esperar maré secar para ir ao mato tirar jupati e cipó... O tempo pintava o céu de cinzento, era chuva na certa. A gente do sítio via passar navio longe do Fim do Mundo, mas porém o pessoal de bordo não estava nem aí.
sexta-feira, 27 de agosto de 2010
travessia da primeira noite do mundo
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… desde jitinho Quinquinhas ouvia a mãe e o pai contarem estórias das origens de Vilarana. Agripino falava da terra e queria ver o filho na marinha mercante, Adélia pelo contrário sonhava ver o pirralho no seminário para ser no futuro vigário da paróquia e não cansava de lembrar o além mar donde seus pais chegaram a fim de criar gado no Grão Pará. O moleque, entretanto, queria ser igual ao finado tio Mundico que seguiu a tradição de navegantes da família, prático de navegação do Amazonas e gostava de puxar conversa com Vovó Tapuia só pra ela falar da primeira noite do mundo. “Diz-que, antigamente, não havera noite – a velha repetia a mesma estória, pela fé das mil e uma noites de Vilarana; pitando cachimbo de barro de sempre – era um dia só de sol a pino que nunca se sentava pra dormir na terra”.
Égua! Já pensou? O povo pegado ao trabalho sem repouso nem nada, nem a lua aparecia uma vez sequer pra consolar a gente... Antão, houve um acontecimento formidável no Amazonas: a filha da cobragrande ia se casar e mãe lá dela resolveu dar de presente à noiva a primeira noite do mundo. O diabo é que a noite estava escondida dentro de um caroço de tucumã no fundo do rio. E lá foram três cativos da cobragrande buscar a noite: eles escutaram uma zoada estranha dentro do caroço e os três abelhudos, ardendo de curiosidade, cuidaram logo de rachar o tucumã pra ver o que havia dentro... “oh, por Deus! – disse a velha – deu-se uma desgraça e tanto pela afobação daqueles três despreparados”. Pois, através da racha escapou uma sombra medonha, paresque, que nem a caixa de Pandora, e os bichos da noite com a escuridão de súbito povoaram a terra de uivos, pios, coachos, gemidos, sono e pesadelo antes de dar tempo à gente pra ver na boca da noite o sol descer do céu e se deitar na rede encarnada do Araquiçaua...
Tio Mundico gostava muito de ouvir contos dos mais velhos pra inventar um ponto a mais e recontar a bordo durante horas ao curso de longos estirões do infinito Amazonas: o qual não se navega duas vezes, ainda que se faça centos de viagens rio acima e abaixo... O tio pegava navio estrangeiro na entrada da barra do Pará levava até Manaus e voltava com carregamentos de borracha e casos de marinheiro e namoradas de beira do rio de passagem por seringais e portos de lenha para atiçar a caldeira do navio movido a cavalos vapor.
Era este o movimentado ofício que Quinquinhas mais pedia a Deus, nada de vida devota de padre nem tédio de viagens transatlânticas: do velho mundo já lhe bastavam os antepassados do avô Afonso Galício, coitados, que serviram de bucha de canhão a aturar guerras sem fim dos monarcas... Quando calhava, tio Mundico vinha as ilhas e parava no Curralpanema a fim de rever a família de Vilarana. Antão, a melhor parte da viagem ficava em casa compartilhada com os parentes: haver de casos e novidades do grande rio que nunca se navega duas vezes, paresque; tão grande e vário como o vasto mundo.
Ouvindo o pai falar daquele seu finado irmão por parte mãe, Quinquinhas premeditava ser um dia também ele prático de navegação do rio Amazonas. Acordado ou dormindo o pirralho ia desenhando na imaginação o roteiro de viagem do tio Mundico Rodrigues. No fundo da rede, tarde da noite em silêncio com as sombras do quintal tisnando a folhagem do tamarindo parrudo, o pirralho às vezes escutava distantes sirenes de navio-vapor passando ao largo no misterioso Amazonas: era, será, o navio encantado com fantasmas a bordo?
Diziam em Vilarana que a ilhinha em face ao Fim do Mundo, em certas noites, se transformava em cobragrande ou navio encantado e assim vogava a ilha em riba da maré, da boca do Curralpanema pelo outro rio até o mar afora da ponta do Maguari. Vestígios da primeira noite do mundo, será?
Tio Mundico contava, outro dia ia ele a bordo de canoa à vela do vilar pra cidade grande a fim de pegar serviço do Loide, quando ao atravessar a baia, coisa mais ou menos de meia-noite, devido à hora que a maré deu pra largar do trapiche da vila que nem vila era, uns tantos quantos passageiros da igarité avistaram aquele paquete todo iluminado como um facho enorme luzindo em meio à escuridão. Coisa mui estúrdia, pois em vez do buque navegar por fora; no canal, como devia; o navio passava pela beira em riba do baixio de pedras. “Espera! – disse um espantado navegante a bordo da “Caripirá” – aquilo lá, paresque, é o tal navio encantado”.
O vento ventava, o mar zoava, banzeiro estrondava e o navio fantasma, paresque, se aproximando a todo vapor a modo vir cortar a proa da canoa. Na igarité, vela e bijarrona estufadas pelo vento terral o piloto chamado Parriba sem mais poder virar o leme e mudar a carreira sem perigo de meter a canoa ao fundo: tão perto ouviram-se música como de uma orquestra e vozes de muitas pessoas em festa a bordo do navio assombrado (física quântica, ufologia, universos paralelos!, diria o doutor Virgílio no bar do Emérito ao saber do relato, tempos depois).
Foi um espanto danado, dizendo o finado; quando passageiros e tripulantes com gritos presos na garganta viram o gaiola a ponto de abalroar a "Caripirá" e, num átimo no derradeiro instante do encontrão, tudo se dissipar diante dos olhos atônitos. O tio, sério, “desta vez eu vi o mistério a um palmo do nariz”... Não fosse o medo que corria solto no escuro pela copa das mangueiras e rondava pelas três ruazinhas da vila que nem vila era, toda vez que o pirralho escutava ao longe apitos de vapor altas horas da noite, ele se levantaria da rede puída em camisão para ir debaixo do pé de tamarindo espiar a beira do rio a ver se, por acaso, a ilhinha da Boiúna estava lá no devido lugar ou fora ela atravessar a baía ampliada pelo sonho e o espanto da primeira noite do mundo.
… desde jitinho Quinquinhas ouvia a mãe e o pai contarem estórias das origens de Vilarana. Agripino falava da terra e queria ver o filho na marinha mercante, Adélia pelo contrário sonhava ver o pirralho no seminário para ser no futuro vigário da paróquia e não cansava de lembrar o além mar donde seus pais chegaram a fim de criar gado no Grão Pará. O moleque, entretanto, queria ser igual ao finado tio Mundico que seguiu a tradição de navegantes da família, prático de navegação do Amazonas e gostava de puxar conversa com Vovó Tapuia só pra ela falar da primeira noite do mundo. “Diz-que, antigamente, não havera noite – a velha repetia a mesma estória, pela fé das mil e uma noites de Vilarana; pitando cachimbo de barro de sempre – era um dia só de sol a pino que nunca se sentava pra dormir na terra”.
Égua! Já pensou? O povo pegado ao trabalho sem repouso nem nada, nem a lua aparecia uma vez sequer pra consolar a gente... Antão, houve um acontecimento formidável no Amazonas: a filha da cobragrande ia se casar e mãe lá dela resolveu dar de presente à noiva a primeira noite do mundo. O diabo é que a noite estava escondida dentro de um caroço de tucumã no fundo do rio. E lá foram três cativos da cobragrande buscar a noite: eles escutaram uma zoada estranha dentro do caroço e os três abelhudos, ardendo de curiosidade, cuidaram logo de rachar o tucumã pra ver o que havia dentro... “oh, por Deus! – disse a velha – deu-se uma desgraça e tanto pela afobação daqueles três despreparados”. Pois, através da racha escapou uma sombra medonha, paresque, que nem a caixa de Pandora, e os bichos da noite com a escuridão de súbito povoaram a terra de uivos, pios, coachos, gemidos, sono e pesadelo antes de dar tempo à gente pra ver na boca da noite o sol descer do céu e se deitar na rede encarnada do Araquiçaua...
Tio Mundico gostava muito de ouvir contos dos mais velhos pra inventar um ponto a mais e recontar a bordo durante horas ao curso de longos estirões do infinito Amazonas: o qual não se navega duas vezes, ainda que se faça centos de viagens rio acima e abaixo... O tio pegava navio estrangeiro na entrada da barra do Pará levava até Manaus e voltava com carregamentos de borracha e casos de marinheiro e namoradas de beira do rio de passagem por seringais e portos de lenha para atiçar a caldeira do navio movido a cavalos vapor.
Era este o movimentado ofício que Quinquinhas mais pedia a Deus, nada de vida devota de padre nem tédio de viagens transatlânticas: do velho mundo já lhe bastavam os antepassados do avô Afonso Galício, coitados, que serviram de bucha de canhão a aturar guerras sem fim dos monarcas... Quando calhava, tio Mundico vinha as ilhas e parava no Curralpanema a fim de rever a família de Vilarana. Antão, a melhor parte da viagem ficava em casa compartilhada com os parentes: haver de casos e novidades do grande rio que nunca se navega duas vezes, paresque; tão grande e vário como o vasto mundo.
Ouvindo o pai falar daquele seu finado irmão por parte mãe, Quinquinhas premeditava ser um dia também ele prático de navegação do rio Amazonas. Acordado ou dormindo o pirralho ia desenhando na imaginação o roteiro de viagem do tio Mundico Rodrigues. No fundo da rede, tarde da noite em silêncio com as sombras do quintal tisnando a folhagem do tamarindo parrudo, o pirralho às vezes escutava distantes sirenes de navio-vapor passando ao largo no misterioso Amazonas: era, será, o navio encantado com fantasmas a bordo?
Diziam em Vilarana que a ilhinha em face ao Fim do Mundo, em certas noites, se transformava em cobragrande ou navio encantado e assim vogava a ilha em riba da maré, da boca do Curralpanema pelo outro rio até o mar afora da ponta do Maguari. Vestígios da primeira noite do mundo, será?
Tio Mundico contava, outro dia ia ele a bordo de canoa à vela do vilar pra cidade grande a fim de pegar serviço do Loide, quando ao atravessar a baia, coisa mais ou menos de meia-noite, devido à hora que a maré deu pra largar do trapiche da vila que nem vila era, uns tantos quantos passageiros da igarité avistaram aquele paquete todo iluminado como um facho enorme luzindo em meio à escuridão. Coisa mui estúrdia, pois em vez do buque navegar por fora; no canal, como devia; o navio passava pela beira em riba do baixio de pedras. “Espera! – disse um espantado navegante a bordo da “Caripirá” – aquilo lá, paresque, é o tal navio encantado”.
O vento ventava, o mar zoava, banzeiro estrondava e o navio fantasma, paresque, se aproximando a todo vapor a modo vir cortar a proa da canoa. Na igarité, vela e bijarrona estufadas pelo vento terral o piloto chamado Parriba sem mais poder virar o leme e mudar a carreira sem perigo de meter a canoa ao fundo: tão perto ouviram-se música como de uma orquestra e vozes de muitas pessoas em festa a bordo do navio assombrado (física quântica, ufologia, universos paralelos!, diria o doutor Virgílio no bar do Emérito ao saber do relato, tempos depois).
Foi um espanto danado, dizendo o finado; quando passageiros e tripulantes com gritos presos na garganta viram o gaiola a ponto de abalroar a "Caripirá" e, num átimo no derradeiro instante do encontrão, tudo se dissipar diante dos olhos atônitos. O tio, sério, “desta vez eu vi o mistério a um palmo do nariz”... Não fosse o medo que corria solto no escuro pela copa das mangueiras e rondava pelas três ruazinhas da vila que nem vila era, toda vez que o pirralho escutava ao longe apitos de vapor altas horas da noite, ele se levantaria da rede puída em camisão para ir debaixo do pé de tamarindo espiar a beira do rio a ver se, por acaso, a ilhinha da Boiúna estava lá no devido lugar ou fora ela atravessar a baía ampliada pelo sonho e o espanto da primeira noite do mundo.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
o Fim do Mundo
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... o Fim do Mundo é a própria gênese da vila que nem vila era. Foi lá que a estória geral começou. Quer dizer Vilarana começou pelo fim, não sabe? Antes carece dizer que este desconhecido rio Curralpaneam tomou seu nome com os contemplados do Grão-Pará, na vez e na hora que o marquês de Pombal expulsou os Jesuítas de Portugal e colônias: antão, dizendo tio Vicente rezador; um padre puto da vida bateu a poeira da chinela, lá dele, e rogou praga. "Fica-te aí, curral panema!". Oh, monstra! Praga bem espraguejada, paresque, se antes a criação de gado já andava ruim das pernas, depois da maldição do padre, se ela já era panema ficou mais panema ainda. Bote panemice, esta gente! Até hoje o Curralpanema não presta pra gado seja cavalar ou gado comum. Até o tal de búfalo, que não enjeita pastagem nenhuma, quando chega nestas bandas amofina, fica arrepiado e entanguido. Eta praga bem botada, compadre!... Paresque é por causa da erva douradinha que nasce misturada ao capim. A rês vem pastando no bem bom, quando come a erva venenosa não demora passa mal, cai pelo chão e não s'alevanta mais...
mas porém, além da praga do padre carece contar como a cajila dos pajés sacacas foi à forra da desfeita dos brancos. Antigamente, todas estas redondezas com certeza eram terra de índio. Não era um índio qualquer de nariz furado, não senhor! Aqui tinha macho e mulher feiticeira perita na arte e ciência da cobra jararaca... Vá vendo só, sô homem. Diz-que quando os caraíbas comedores de gente apareceram pela outra banda do rio grande, o tempo fechou nas ilhas filhas da pororoca. Aí, o pau chinchou e morreu gente em quantidade.
Vai em cima, vai embaixo, era taco a taco: se esta gente atravessasse pra terra-firme caraíba pegava e comia o besta que nem onça come embiara... Deixa estar, caraíba velho: diziam as mais velhas comadres da Matinta pirera, que sabia o segredo da jararaca, fervendo curabi na panela de barro. Os velhos pajés tiravam no mato braço de paxiúba no tempo da lua pra fazer canudo e assoprar espinho de patauazeiro envenado em riba daqueles filhos da mãe que avezavam de atravessar para o lado das ilhas. E toma-lhe, corno!... Não sabe como era a guerra do Fim do Mundo? Antão! A gente fazia que nem quando se quer pegar tracajá saindo fora d'água, na manha: escondido no mato na beira da praia; paresque lagartixa tamaquaré a mundiar a embiara lá dela... Quando em horas mortas a gente via comedor de gente vir chegando devagar, a gente se apreparava na tocaia; parado que nem um morto, o índio malvado nem piscava paresque. Vigia lá nele a própria alma da cobra jararaca, cujo veneno tirado e misturado com tajapuru e baba de sapo embebia o estrepe de patauá e a bucha do canudo, dito zarabatana. Com infinita paciência, sem afeição nem desafeição nem um trisco de pensamento sobre a natureza das coisas, o nheengaíba esperava a vez e a hora de expedir a morte travar os passos do inimigo invasor e comedor de carne humana. Antão, era só um sopro, zás! Era pá e te aquieta na certa. Caia um, outro tropicava com a picada mortífera no lombo e o caraíba não via donde o feitiço havera saído: melhor carregar logo os mortos e voltar de carreira pra trás: caminho do feio é por donde veio...
assim andava aquela guerra de antigamente entre gentes da terra-firme e das ilhas, quando havera de aparecer pelo Norte os tais panaquiris (quer dizer homens brancos, holandeses), ditos hereges; querendo trabucar missangas em troca de pau de tinta e gados do rio. Que mal havia nesse comércio caído dos céus, ou melhor saído do alto mar? Os hereges até que não eram malvados como os cariuás, brancos malvados que só vinham para pegar gente e arrastar ao cativeiro com as tropas de resgate de escravos. Mas, bom! Veja lá se a gente era besta... Os hereges fizeram feitoria em Mariocai, que quer dizer casa de "faca", taberna de ferragens; onde a gente ia trocar coisas da terra pelas inglezias que os hereges traziam.
mas, "por Deus! Que gente feia essa! - Vovó Tapuia se escandalizava da maldade humana - a inveja é uma merda...". Os cariuá com inveja do comércio dos hereges e os caraíbas com inveja da fortuna dos índios das ilhas fizeram má companhia, "ajuntaram-se a tampa e o penico" a velha dizia, pra fazer maior a guerra que havera de existir desde antigamente no tempo da vela de jupati, paresque. Antão, o pessoal da terra-firme ao lado de cariuá armados de aracabuxá que cospe fogo e metidos a bordo de igarité grande tomou coragem e juntos uns e outros pintaram a saracura... Levaram os hereges debaixo de porrada até fora da boca do rio grande para as bandas do mar e os índios que eram amigos dos panaquiris pagaram o pato. Puta merda! Antão, mais que dantes ficaram de mal as duas bandas do rio. Até que chegou o padre grande, dito payaçu dos índios; com boas falas e o cacique dos Mapuás, chamado Piié; convidou os tuxauas da gente para ir conversar com tal payaçu e colocar termo naquela guerra velha que já tinha matado tanta gente quanto a cobra jararaca e o andaço das febres. Dito e feito! Acabou-se a guerra do Curralpanema, mas os cariuás não gostaram nadinha desta conversa.
mas porém, nem bem os padres tinham feito as pazes com os índios e povoado aldeias da missão com gente das ilhas e já os tais cariuás começaram com a senvergonice deles de antes. Deram-lhe porrada aos padres, paresque, e mandaram embora sem dó nem piedade. Já que faziam assim com os padres, "calcule tia Maroca o que eles não faziam com os índios!". Antão, os caciques se ajuntaram num ajuri de conselho a modo saber o que havera deles fazer sem os comerciantes hereges que deram no pé e sem os padres catequistas mandados embora. Disse o mesmo Piié dos Mapuás, "mea gente, a coisa tá feia... ainda bem que caruana me assoprou pra não jurar pela lei dos caruás: ficamos quites, caruá não nos deve nada; nada devemos aos caruás"... Se ele não disse, digo eu; emendou tio Vicente rezador com sua grande voz de orai pro nobis, que nem o velho Tupã do espingarito das nuvens anunciando chuva e trovoada. O certo é que morreu o rei e viveu o rei de Portugal (porque entre os cariuás tem essa estória da hereditariedade dos reis). Antão, se o rei velho disse por voz do payaçu que índio estava livre de peia e cativeiro, podendo ficar em paz nas ilhas onde nasceram; o rei novo deu o dito por não dito, aluou e entregou de mão beijado todo este vasto Curralpanema e o outro rio inclusive aos barões das sesmarias de Terras-Caidas. Égua, já pensou no que é azar da criaturada?
mas aí, a coisa fedeu e não prestou mais! Os caciques se enfezaram de vera, as velhas matintas e os pajés chamaram os caruanas para saber dos encantados o que, paresque, se havera de fazer em parelha situação. Vovó Tapuia quando não sabia do certo, inventava estória na hora e pedia amém do parente tio Vicente, "não foi, Vico?": tio Vicente rezador batia pronto, "foi tia Maroca". E sem se dar por achado aumentava um ponto. Aí, diz-que, os pajés sacacas pediram conselho ao caruana da cobragrande Boiúna do lago Guajará, dizendo a dita cuja, "deixa estar esta gente; cariuá não sabe com quem se meteu". Dito e feito. Cariuá meteu gado nos campos do Curralpanema, que se chamava ainda Igarapepuca, a modo com medo dos índios e dos pretos fugidos que se escondiam em mocambos lá pelos centros da jebre mais defesa aos estranhos. Mas porém quem havera de dar mais prejuízos às fazendas do que os índios do caritó, desertores e pretos fugidos, atoleiros nos balcedos, jacarés e cobras, todos juntos; foi o Boi Selado (desconforme bicho do fundo, da linhagem da cobragrande Boiúna). Em certas luas, o pingalho animal fantasma saiu do lago Guajará e levava a peste para o gado, quando o boi encantado aparecia nomeio da malhada era certo o estouro da boida; o gado arrebentava porteira nos peitos, arribava e ficava arisco. Virava gado do vento, rês orelhuda, gado sem dono...
este rio ou igarapé comprido, filhote da lenda do rio das amazonas; além de pegar praga pega diferentes nomes com facilidade. Qualquer um que venha cá e se engrace com alguma coisa em particular pode apelidar e logo o rio Curralpanema mudará de nome como cobra larga a pele... Desconjuro. Mas porém lhe asseguro que nos princípios do rio havera de ter nome próprio, que nem índio tem nome secreto. Não sabe? Índio toma nomes tantos quantos queira ou lhe dem por apelido, mas porém o verdadeiro só ele sabe com o pai, a mãe e o pajé da aldeia que o viu nascer. Ninguém mais. Se por azar um estranho ouvir o segredo fica sendo dono da sina do índio... Do mesmo jeito Curralpanema é apelido do rio que foi um dia Carapanaoca, Igarapepuca, paresque, rio da Fábrica outro dia... Um certo barão governador da província mandou os escravos dele cavar canal a braço... A braço! Já viu uma coisa estúrdia como esta? Pois foi: a braço de escravo abriu-se o Canal que virou rio do dito cujo e depois rio Canal simplesmente. Não sem antes um desconforme desastre que foi o desabamento do barranco em riba dos pobres escravos, mortos e enterrados no fundo do canal confronte ao sítio dito as Terras Caídas... Haja visagem no lugar: diz-que aquele gente era da costa da Guiné e por artes mágicas abriu outro canal pelo fundo deste que se vê nas Terras-Caídas, vara para o lago Guajará por um subterrâneo que faz furo para o sítio aonde o sol vai dormir no fim do dia. Quando a madrugada vence a pejeja com a Meia-Noite, paresque, o povo pega a carruagem de Guaraci (mãe dos vivente, o dito sol) e volta para o reino encantado da Mina (com a palavra dona Zulima, que ensina os mistérios à comadre Didi e não me deixa mentir).
tudo isto havera de ser um único e só Curralpanema cujo nome próprio não se sabe de jeito nenhum, dizendo tio Vicente rezador, que o último índio batizado pelo padre perdeu a memória de si mesmo e do rio de outrora. Ora, a vera estória é que este mundo nem das amazonas era antigamente. Enquanto Vilarana do Curralpanema, a vila que nem vila era, se surdiu na estória numa ponta de pedras na boca do rio confinante com a varja do compadre Manduquinha. Paresque era maloca de índio brabo das ilhas que foram amansados pelos padres da igreja de Nossa Senhora do Tempo, uma vez que já tinham os brabos aprendido padre nosso, ave maria e davam conta de rezar ladaínha; antão é que vieram da outra banda índios civilizados pelos ditos padres depois daquele antiga paz desfeita pelo rei maluco do reino de Portugal e, mais tarde, os pretos da capitania do barão, mais os brancos sesmeiros e seus brancaranas feitores com o gado e as inglezias todas.
antão, o tempo fechou... Dizendo tio Vicente rezador e contador d'estória que o tal batizado do rio Curralpanema deu caso de muita peleja entre índios, pretos e brancos. De primeiro, esta gente mais antiga se fizeram meigas porque os ditos padres vieram com boas conversas enquanto os brancos já duravam muitas luas de pura maldade trazidos armados de aracabuxá, a modo arcabuz; pelos índios caraíbas comedor de gente... Vovó Tapuia se lembra de ouvir a avó, lá dela; contar. Quando era estória de muito antigamente a velha tapuia espichava o tempo dizendo ela isto ou aquilo outro "era do tempo da vela de jupati"... Jupati paresque era uma senha: a dizer, bote tempo nisso! Pois era de muita antiguidade o tempo desta gente do Fim do Mundo.
... o Fim do Mundo é a própria gênese da vila que nem vila era. Foi lá que a estória geral começou. Quer dizer Vilarana começou pelo fim, não sabe? Antes carece dizer que este desconhecido rio Curralpaneam tomou seu nome com os contemplados do Grão-Pará, na vez e na hora que o marquês de Pombal expulsou os Jesuítas de Portugal e colônias: antão, dizendo tio Vicente rezador; um padre puto da vida bateu a poeira da chinela, lá dele, e rogou praga. "Fica-te aí, curral panema!". Oh, monstra! Praga bem espraguejada, paresque, se antes a criação de gado já andava ruim das pernas, depois da maldição do padre, se ela já era panema ficou mais panema ainda. Bote panemice, esta gente! Até hoje o Curralpanema não presta pra gado seja cavalar ou gado comum. Até o tal de búfalo, que não enjeita pastagem nenhuma, quando chega nestas bandas amofina, fica arrepiado e entanguido. Eta praga bem botada, compadre!... Paresque é por causa da erva douradinha que nasce misturada ao capim. A rês vem pastando no bem bom, quando come a erva venenosa não demora passa mal, cai pelo chão e não s'alevanta mais...
mas porém, além da praga do padre carece contar como a cajila dos pajés sacacas foi à forra da desfeita dos brancos. Antigamente, todas estas redondezas com certeza eram terra de índio. Não era um índio qualquer de nariz furado, não senhor! Aqui tinha macho e mulher feiticeira perita na arte e ciência da cobra jararaca... Vá vendo só, sô homem. Diz-que quando os caraíbas comedores de gente apareceram pela outra banda do rio grande, o tempo fechou nas ilhas filhas da pororoca. Aí, o pau chinchou e morreu gente em quantidade.
Vai em cima, vai embaixo, era taco a taco: se esta gente atravessasse pra terra-firme caraíba pegava e comia o besta que nem onça come embiara... Deixa estar, caraíba velho: diziam as mais velhas comadres da Matinta pirera, que sabia o segredo da jararaca, fervendo curabi na panela de barro. Os velhos pajés tiravam no mato braço de paxiúba no tempo da lua pra fazer canudo e assoprar espinho de patauazeiro envenado em riba daqueles filhos da mãe que avezavam de atravessar para o lado das ilhas. E toma-lhe, corno!... Não sabe como era a guerra do Fim do Mundo? Antão! A gente fazia que nem quando se quer pegar tracajá saindo fora d'água, na manha: escondido no mato na beira da praia; paresque lagartixa tamaquaré a mundiar a embiara lá dela... Quando em horas mortas a gente via comedor de gente vir chegando devagar, a gente se apreparava na tocaia; parado que nem um morto, o índio malvado nem piscava paresque. Vigia lá nele a própria alma da cobra jararaca, cujo veneno tirado e misturado com tajapuru e baba de sapo embebia o estrepe de patauá e a bucha do canudo, dito zarabatana. Com infinita paciência, sem afeição nem desafeição nem um trisco de pensamento sobre a natureza das coisas, o nheengaíba esperava a vez e a hora de expedir a morte travar os passos do inimigo invasor e comedor de carne humana. Antão, era só um sopro, zás! Era pá e te aquieta na certa. Caia um, outro tropicava com a picada mortífera no lombo e o caraíba não via donde o feitiço havera saído: melhor carregar logo os mortos e voltar de carreira pra trás: caminho do feio é por donde veio...
assim andava aquela guerra de antigamente entre gentes da terra-firme e das ilhas, quando havera de aparecer pelo Norte os tais panaquiris (quer dizer homens brancos, holandeses), ditos hereges; querendo trabucar missangas em troca de pau de tinta e gados do rio. Que mal havia nesse comércio caído dos céus, ou melhor saído do alto mar? Os hereges até que não eram malvados como os cariuás, brancos malvados que só vinham para pegar gente e arrastar ao cativeiro com as tropas de resgate de escravos. Mas, bom! Veja lá se a gente era besta... Os hereges fizeram feitoria em Mariocai, que quer dizer casa de "faca", taberna de ferragens; onde a gente ia trocar coisas da terra pelas inglezias que os hereges traziam.
mas, "por Deus! Que gente feia essa! - Vovó Tapuia se escandalizava da maldade humana - a inveja é uma merda...". Os cariuá com inveja do comércio dos hereges e os caraíbas com inveja da fortuna dos índios das ilhas fizeram má companhia, "ajuntaram-se a tampa e o penico" a velha dizia, pra fazer maior a guerra que havera de existir desde antigamente no tempo da vela de jupati, paresque. Antão, o pessoal da terra-firme ao lado de cariuá armados de aracabuxá que cospe fogo e metidos a bordo de igarité grande tomou coragem e juntos uns e outros pintaram a saracura... Levaram os hereges debaixo de porrada até fora da boca do rio grande para as bandas do mar e os índios que eram amigos dos panaquiris pagaram o pato. Puta merda! Antão, mais que dantes ficaram de mal as duas bandas do rio. Até que chegou o padre grande, dito payaçu dos índios; com boas falas e o cacique dos Mapuás, chamado Piié; convidou os tuxauas da gente para ir conversar com tal payaçu e colocar termo naquela guerra velha que já tinha matado tanta gente quanto a cobra jararaca e o andaço das febres. Dito e feito! Acabou-se a guerra do Curralpanema, mas os cariuás não gostaram nadinha desta conversa.
mas porém, nem bem os padres tinham feito as pazes com os índios e povoado aldeias da missão com gente das ilhas e já os tais cariuás começaram com a senvergonice deles de antes. Deram-lhe porrada aos padres, paresque, e mandaram embora sem dó nem piedade. Já que faziam assim com os padres, "calcule tia Maroca o que eles não faziam com os índios!". Antão, os caciques se ajuntaram num ajuri de conselho a modo saber o que havera deles fazer sem os comerciantes hereges que deram no pé e sem os padres catequistas mandados embora. Disse o mesmo Piié dos Mapuás, "mea gente, a coisa tá feia... ainda bem que caruana me assoprou pra não jurar pela lei dos caruás: ficamos quites, caruá não nos deve nada; nada devemos aos caruás"... Se ele não disse, digo eu; emendou tio Vicente rezador com sua grande voz de orai pro nobis, que nem o velho Tupã do espingarito das nuvens anunciando chuva e trovoada. O certo é que morreu o rei e viveu o rei de Portugal (porque entre os cariuás tem essa estória da hereditariedade dos reis). Antão, se o rei velho disse por voz do payaçu que índio estava livre de peia e cativeiro, podendo ficar em paz nas ilhas onde nasceram; o rei novo deu o dito por não dito, aluou e entregou de mão beijado todo este vasto Curralpanema e o outro rio inclusive aos barões das sesmarias de Terras-Caidas. Égua, já pensou no que é azar da criaturada?
mas aí, a coisa fedeu e não prestou mais! Os caciques se enfezaram de vera, as velhas matintas e os pajés chamaram os caruanas para saber dos encantados o que, paresque, se havera de fazer em parelha situação. Vovó Tapuia quando não sabia do certo, inventava estória na hora e pedia amém do parente tio Vicente, "não foi, Vico?": tio Vicente rezador batia pronto, "foi tia Maroca". E sem se dar por achado aumentava um ponto. Aí, diz-que, os pajés sacacas pediram conselho ao caruana da cobragrande Boiúna do lago Guajará, dizendo a dita cuja, "deixa estar esta gente; cariuá não sabe com quem se meteu". Dito e feito. Cariuá meteu gado nos campos do Curralpanema, que se chamava ainda Igarapepuca, a modo com medo dos índios e dos pretos fugidos que se escondiam em mocambos lá pelos centros da jebre mais defesa aos estranhos. Mas porém quem havera de dar mais prejuízos às fazendas do que os índios do caritó, desertores e pretos fugidos, atoleiros nos balcedos, jacarés e cobras, todos juntos; foi o Boi Selado (desconforme bicho do fundo, da linhagem da cobragrande Boiúna). Em certas luas, o pingalho animal fantasma saiu do lago Guajará e levava a peste para o gado, quando o boi encantado aparecia nomeio da malhada era certo o estouro da boida; o gado arrebentava porteira nos peitos, arribava e ficava arisco. Virava gado do vento, rês orelhuda, gado sem dono...
este rio ou igarapé comprido, filhote da lenda do rio das amazonas; além de pegar praga pega diferentes nomes com facilidade. Qualquer um que venha cá e se engrace com alguma coisa em particular pode apelidar e logo o rio Curralpanema mudará de nome como cobra larga a pele... Desconjuro. Mas porém lhe asseguro que nos princípios do rio havera de ter nome próprio, que nem índio tem nome secreto. Não sabe? Índio toma nomes tantos quantos queira ou lhe dem por apelido, mas porém o verdadeiro só ele sabe com o pai, a mãe e o pajé da aldeia que o viu nascer. Ninguém mais. Se por azar um estranho ouvir o segredo fica sendo dono da sina do índio... Do mesmo jeito Curralpanema é apelido do rio que foi um dia Carapanaoca, Igarapepuca, paresque, rio da Fábrica outro dia... Um certo barão governador da província mandou os escravos dele cavar canal a braço... A braço! Já viu uma coisa estúrdia como esta? Pois foi: a braço de escravo abriu-se o Canal que virou rio do dito cujo e depois rio Canal simplesmente. Não sem antes um desconforme desastre que foi o desabamento do barranco em riba dos pobres escravos, mortos e enterrados no fundo do canal confronte ao sítio dito as Terras Caídas... Haja visagem no lugar: diz-que aquele gente era da costa da Guiné e por artes mágicas abriu outro canal pelo fundo deste que se vê nas Terras-Caídas, vara para o lago Guajará por um subterrâneo que faz furo para o sítio aonde o sol vai dormir no fim do dia. Quando a madrugada vence a pejeja com a Meia-Noite, paresque, o povo pega a carruagem de Guaraci (mãe dos vivente, o dito sol) e volta para o reino encantado da Mina (com a palavra dona Zulima, que ensina os mistérios à comadre Didi e não me deixa mentir).
tudo isto havera de ser um único e só Curralpanema cujo nome próprio não se sabe de jeito nenhum, dizendo tio Vicente rezador, que o último índio batizado pelo padre perdeu a memória de si mesmo e do rio de outrora. Ora, a vera estória é que este mundo nem das amazonas era antigamente. Enquanto Vilarana do Curralpanema, a vila que nem vila era, se surdiu na estória numa ponta de pedras na boca do rio confinante com a varja do compadre Manduquinha. Paresque era maloca de índio brabo das ilhas que foram amansados pelos padres da igreja de Nossa Senhora do Tempo, uma vez que já tinham os brabos aprendido padre nosso, ave maria e davam conta de rezar ladaínha; antão é que vieram da outra banda índios civilizados pelos ditos padres depois daquele antiga paz desfeita pelo rei maluco do reino de Portugal e, mais tarde, os pretos da capitania do barão, mais os brancos sesmeiros e seus brancaranas feitores com o gado e as inglezias todas.
antão, o tempo fechou... Dizendo tio Vicente rezador e contador d'estória que o tal batizado do rio Curralpanema deu caso de muita peleja entre índios, pretos e brancos. De primeiro, esta gente mais antiga se fizeram meigas porque os ditos padres vieram com boas conversas enquanto os brancos já duravam muitas luas de pura maldade trazidos armados de aracabuxá, a modo arcabuz; pelos índios caraíbas comedor de gente... Vovó Tapuia se lembra de ouvir a avó, lá dela; contar. Quando era estória de muito antigamente a velha tapuia espichava o tempo dizendo ela isto ou aquilo outro "era do tempo da vela de jupati"... Jupati paresque era uma senha: a dizer, bote tempo nisso! Pois era de muita antiguidade o tempo desta gente do Fim do Mundo.
terça-feira, 24 de agosto de 2010
bom dia, Vilarana
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... na estória geral do rio das amazonas, eis a vila que nem vila era: Vilarana do Curralpanema, a flor dos tijucos e aningais. Um não-lugar à margem do próprio limbo metafísico onde a imaginação gosta de zombar da realidade e reinventar a paisagem esmaecida na memória. Joaquim Ferreira Rodrigues, seu criado aqui presente, por apelido de casa Quinquinhas; passa do papel almaço e caneta bic que lhe calejou a mão destra para esta sorte de magia moderna que se chama internet. Se a coisa quer dizer 'rede', rede é com a gente de Vilarana mesmo. Aqui a gente nasce, faz criança, vive e morre em rede...
que progresso e tanto na vila que nem vila era! Nunca dantes nas mais avançadas das mais avançadas conversações no bar do Emérito se chegou a imaginar uma coisa desta. Antão, haja o filho do Agripino e dona Adélia Galizio praticar a tal inglezia que já apareceu até nestas paragens fora do mapa real: daqui mandará ele notícias ao mundo e as saberá na mesma hora dos acontecimentos.
Quem diria? A vila que nem vila era foi pra frente. Apesar da caveira de burro enterrada debaixo da igreja de Nossa Senhora do Tempo, apesar da cobragrande Boiúna que mora no sumetume encantado da ilhinha confronte ao Fim do Mundo; apesar de assombração de Curupira e Matinta Perera pra quem anda saqueando as varjas; e, afinal de contas, da velha oligarquia familiar ultra malina do finado Intendente Boaventura Everdosa.
mas porém, como hoje é dia do Berto é bom a gente parar por aqui e esperar que o dito cujo vá mijar no pé dos açaizeiros a fim de pretejar cacho de açaí nosso de cada dia. Talvez os senhores e as senhoras não saibam que para veneno o açaí só falta um grau... Quem disse? Compadre Manduquinha (cara de índio "extinto"), exímio conhecedor de vinho de açaí tinto, branco, tirado a tinta e parau... Acho eu que o quase veneno do açaí se deve à mijada do Berto nas touças de açaizeiro no dia 24 de agosto. O Berto é o Diabo, não sabe? Pois, aqui no Curralpanema esta gente tem medo ou respeito ao Berto. Mas, paresque, porque a vida nossa é mui dificultosa em riba da maré todo mundo aqui tem que trabalhar desde pirralho na apanhação de açaí. Antão, até o Capeta é obrigado a prestar algum serviço que preste pra gente...
perguntei, uma vez, a padre Eurico por que havera este tal dia do Berto. Ele me olhou zolhudo com seus grandes bagos de olhos azuis azuis... e falou diz-que "non saberr superrtição de kaboco"... Puta merda! Se o padre alemão não sabe disto, quem mais em Vilarana havera de saber? Foi quando, por acaso ou mandado pelo Cão, o doutor Virgílio proseando no bar do Emérito disse o seguinte:
há muito tempo, na França paresque, deu-se a desconforme noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de milquinhentos e tantos; a matança doide de crentes por católicos do tempo do ronca. Depois da desgraça feita os bons católicos consumiram-se em baitas penitências e botaram a culpa no Diabo... O Liduíno do Boi, que já tinha consumido umas e outras doses de matabicho, matou a charada na hora dizendo ele: "Ah, parente; é por isto paresque que inventaram a estória do Berto nestas bandas..". Aí o Emérito emendou, "ai ai! antão, foram os Padres de antigamente que trouxeram o Berto Bartolomeu pra estas paragens".
Deu-se um silêncio perturbador. Emérito estava recentemente convertido ao Protestantismo. Quinquinhas sentiu cheiro de pólvora no ar (lembrou-se da vez em que a casa do fogueteiro Lucindo explodiu e foram encontrar o corpo do pobre pulverizado pelas árvores do quintal até o açaizal no igarapé adentro)...Meu Deus, era dia do Berto! Imagina o perigo de explosão de ânimos, aquilo lá podia dar em grossa confusão se um católico velho ressentido com a flechada do crente novato avezasse de brigar por causa de sua santa religião apostólica romana. Mas porém, por se tratar justo do dia que era e já estar na hora da boia; a gente, escaldada de tontas encrencas do lugar, achou melhor se levantar e ir embora. O relógio da igreja bateu meio dia em ponto, saracura no mato cantou na quebrada da maré, Emérito fechou o bar e também cuidou de ir almoçar. Vilarana toda forrou as tripas com peixe frito e pirão de açaí colhido de véspera e foi dormir a sesta na rede. As três ruas ardiam debaixo do sol a pino que nem febrão de malária. Credo em cruz...
Diabo é quem trabalha num dia destes.
... na estória geral do rio das amazonas, eis a vila que nem vila era: Vilarana do Curralpanema, a flor dos tijucos e aningais. Um não-lugar à margem do próprio limbo metafísico onde a imaginação gosta de zombar da realidade e reinventar a paisagem esmaecida na memória. Joaquim Ferreira Rodrigues, seu criado aqui presente, por apelido de casa Quinquinhas; passa do papel almaço e caneta bic que lhe calejou a mão destra para esta sorte de magia moderna que se chama internet. Se a coisa quer dizer 'rede', rede é com a gente de Vilarana mesmo. Aqui a gente nasce, faz criança, vive e morre em rede...
que progresso e tanto na vila que nem vila era! Nunca dantes nas mais avançadas das mais avançadas conversações no bar do Emérito se chegou a imaginar uma coisa desta. Antão, haja o filho do Agripino e dona Adélia Galizio praticar a tal inglezia que já apareceu até nestas paragens fora do mapa real: daqui mandará ele notícias ao mundo e as saberá na mesma hora dos acontecimentos.
Quem diria? A vila que nem vila era foi pra frente. Apesar da caveira de burro enterrada debaixo da igreja de Nossa Senhora do Tempo, apesar da cobragrande Boiúna que mora no sumetume encantado da ilhinha confronte ao Fim do Mundo; apesar de assombração de Curupira e Matinta Perera pra quem anda saqueando as varjas; e, afinal de contas, da velha oligarquia familiar ultra malina do finado Intendente Boaventura Everdosa.
mas porém, como hoje é dia do Berto é bom a gente parar por aqui e esperar que o dito cujo vá mijar no pé dos açaizeiros a fim de pretejar cacho de açaí nosso de cada dia. Talvez os senhores e as senhoras não saibam que para veneno o açaí só falta um grau... Quem disse? Compadre Manduquinha (cara de índio "extinto"), exímio conhecedor de vinho de açaí tinto, branco, tirado a tinta e parau... Acho eu que o quase veneno do açaí se deve à mijada do Berto nas touças de açaizeiro no dia 24 de agosto. O Berto é o Diabo, não sabe? Pois, aqui no Curralpanema esta gente tem medo ou respeito ao Berto. Mas, paresque, porque a vida nossa é mui dificultosa em riba da maré todo mundo aqui tem que trabalhar desde pirralho na apanhação de açaí. Antão, até o Capeta é obrigado a prestar algum serviço que preste pra gente...
perguntei, uma vez, a padre Eurico por que havera este tal dia do Berto. Ele me olhou zolhudo com seus grandes bagos de olhos azuis azuis... e falou diz-que "non saberr superrtição de kaboco"... Puta merda! Se o padre alemão não sabe disto, quem mais em Vilarana havera de saber? Foi quando, por acaso ou mandado pelo Cão, o doutor Virgílio proseando no bar do Emérito disse o seguinte:
há muito tempo, na França paresque, deu-se a desconforme noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de milquinhentos e tantos; a matança doide de crentes por católicos do tempo do ronca. Depois da desgraça feita os bons católicos consumiram-se em baitas penitências e botaram a culpa no Diabo... O Liduíno do Boi, que já tinha consumido umas e outras doses de matabicho, matou a charada na hora dizendo ele: "Ah, parente; é por isto paresque que inventaram a estória do Berto nestas bandas..". Aí o Emérito emendou, "ai ai! antão, foram os Padres de antigamente que trouxeram o Berto Bartolomeu pra estas paragens".
Deu-se um silêncio perturbador. Emérito estava recentemente convertido ao Protestantismo. Quinquinhas sentiu cheiro de pólvora no ar (lembrou-se da vez em que a casa do fogueteiro Lucindo explodiu e foram encontrar o corpo do pobre pulverizado pelas árvores do quintal até o açaizal no igarapé adentro)...Meu Deus, era dia do Berto! Imagina o perigo de explosão de ânimos, aquilo lá podia dar em grossa confusão se um católico velho ressentido com a flechada do crente novato avezasse de brigar por causa de sua santa religião apostólica romana. Mas porém, por se tratar justo do dia que era e já estar na hora da boia; a gente, escaldada de tontas encrencas do lugar, achou melhor se levantar e ir embora. O relógio da igreja bateu meio dia em ponto, saracura no mato cantou na quebrada da maré, Emérito fechou o bar e também cuidou de ir almoçar. Vilarana toda forrou as tripas com peixe frito e pirão de açaí colhido de véspera e foi dormir a sesta na rede. As três ruas ardiam debaixo do sol a pino que nem febrão de malária. Credo em cruz...
Diabo é quem trabalha num dia destes.
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