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Em Vilarana a maré era senhora do tempo: embora o relógio da igreja de Nossa Senhora do Tempo ditasse as horas pelos ponteiros mal consertados pelo devoto Bibiano Ramos ou, às vezes, pelo eletricista Guitão Pereira. Havia um desacordo entre os dois tempos na vila que nem vila era.. O relógio da matriz marcava as horas do dia e da noite, lembrava a história do engenho Bem-Bom aonde o tal relógio veio parar importado, paresque, da Inglaterra antes de ser doado pelo falecido coronel Leopoldino Ribeiro à construção da dita igreja. Por outra parte, quem dava as horas da maré na varja do Curralpanena era saracura: três potes, três potes, três potes... quebraram um, quebraram um... Quando a maré quebrava na reponta das águas era saracura quem cuidava de avisar aos navegantes do rio
Não raro, o relógio de Vilarana estava atrasado ou quebrado. Como se aquelas engrenagens, paresque, da Cabala se retardassem da marcha do astro do dia. Ultimamente, a velha corrente puxada pela mão invisível da gravidade se rompia com mais frequência do que dantes e deixava desnorteados passageiros de igarités com viagem marcada pra cidade. A ferrugem herdada do engenho de fogo morto ia aos poucos findando o tempo de vida do relógio, então carecia Guitão dar tudo de seu invento para forjar novas peças e elos quebrados daquela corrente que parecia pender do infinito. Já o pessoal da beira parecia ter despertador certo com a vigilante saracura: nunca perdia a maré e o tempo da lua. Era caso de acreditar, como dizia Vovó Tapuia, este era o relógio que vigia no tempo da vela de jupati. Nunca atrasava nem adiantada e a corrente só se rompeu quando os brancos avezaram de levantar engenho e comprar escravo pra plantar canavial na varja. Com tal quizília com os padres e os índios da praia transferiu-se a freguesia pra dentro deste rio dos canaviais, deixando ao abandono a aldeia e a capela praiana: tristeza de Nossa Senhora do Tempo...
Certas noites de luar, em Vilarana, os moradores viam uma dama vestida de branco caminhando pela estrada que levava à aldeia das praias. Era, diz-que, Nossa Senhora em busca de sua antiga capela junto aos pescadores. Quando o dia amanhecia os devotos podiam ver sobre o altar da igreja a santa imagem com a barra de seu manto molhada pelo sereno e areia de praia nos pés. Tal prodígio era um desconforme espanto na vila que nem vila era!
O mistério habitava Vilarana, noves fora os encantados do fundo do rio e das matas do Curralpanema. Mamãe Adélia levou o filho a visitar o Senhor Morto na igreja na sexta-feira santa: malcomparado, era que nem a imagem do avô Afonso Galizio quando chegou em casa, de repente, metido dentro do caixão... A igreja em luto e as imagens cobertas de roxo, o pirralho queria saber onde Deus estava; a mãe dizia: “Ele está aqui”... Mas, onde? Que não via... Uma lâmpada encarnada acesa avisava que sim, Deus morava na igreja de Nossa Senhora do Tempo. Mas porém, o que Quinquinhas viu debaixo do altar-mor era o Senhor Morto estirado com o corpo coberto de chagas. Mamãe Adélia disse, “se ajoelhe e beije os pés do santo”... “Eu não!”. O protesto do menino pareceu acordar os santos do sono da eternidade. Saiu dali arrastado sob os ralhos maternos e foi se consolar com Vovó Tapuia. Durante as procissões pelas três únicas ruas de Vilarana debaixo de sol escaldante, respirando poeira com ar de estrume de vacas, cavalos e carneiros que andavam a solta, seguia a banda e o povo cantando “no céu, no céu, na santa glória um dia, co'mea mãe estarei...”. O relógio batia meio-dia e a gente entrava na igreja ofegante, trazia o sol preso nos cabelos e cara incendiada. A fome apertava: era ver se a maré deu peixe neste dia, graças a Deus o açaí já estava garantido no alguidar.
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