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... o Fim do Mundo é a própria gênese da vila que nem vila era. Foi lá que a estória geral começou. Quer dizer Vilarana começou pelo fim, não sabe? Antes carece dizer que este desconhecido rio Curralpaneam tomou seu nome com os contemplados do Grão-Pará, na vez e na hora que o marquês de Pombal expulsou os Jesuítas de Portugal e colônias: antão, dizendo tio Vicente rezador; um padre puto da vida bateu a poeira da chinela, lá dele, e rogou praga. "Fica-te aí, curral panema!". Oh, monstra! Praga bem espraguejada, paresque, se antes a criação de gado já andava ruim das pernas, depois da maldição do padre, se ela já era panema ficou mais panema ainda. Bote panemice, esta gente! Até hoje o Curralpanema não presta pra gado seja cavalar ou gado comum. Até o tal de búfalo, que não enjeita pastagem nenhuma, quando chega nestas bandas amofina, fica arrepiado e entanguido. Eta praga bem botada, compadre!... Paresque é por causa da erva douradinha que nasce misturada ao capim. A rês vem pastando no bem bom, quando come a erva venenosa não demora passa mal, cai pelo chão e não s'alevanta mais...
mas porém, além da praga do padre carece contar como a cajila dos pajés sacacas foi à forra da desfeita dos brancos. Antigamente, todas estas redondezas com certeza eram terra de índio. Não era um índio qualquer de nariz furado, não senhor! Aqui tinha macho e mulher feiticeira perita na arte e ciência da cobra jararaca... Vá vendo só, sô homem. Diz-que quando os caraíbas comedores de gente apareceram pela outra banda do rio grande, o tempo fechou nas ilhas filhas da pororoca. Aí, o pau chinchou e morreu gente em quantidade.
Vai em cima, vai embaixo, era taco a taco: se esta gente atravessasse pra terra-firme caraíba pegava e comia o besta que nem onça come embiara... Deixa estar, caraíba velho: diziam as mais velhas comadres da Matinta pirera, que sabia o segredo da jararaca, fervendo curabi na panela de barro. Os velhos pajés tiravam no mato braço de paxiúba no tempo da lua pra fazer canudo e assoprar espinho de patauazeiro envenado em riba daqueles filhos da mãe que avezavam de atravessar para o lado das ilhas. E toma-lhe, corno!... Não sabe como era a guerra do Fim do Mundo? Antão! A gente fazia que nem quando se quer pegar tracajá saindo fora d'água, na manha: escondido no mato na beira da praia; paresque lagartixa tamaquaré a mundiar a embiara lá dela... Quando em horas mortas a gente via comedor de gente vir chegando devagar, a gente se apreparava na tocaia; parado que nem um morto, o índio malvado nem piscava paresque. Vigia lá nele a própria alma da cobra jararaca, cujo veneno tirado e misturado com tajapuru e baba de sapo embebia o estrepe de patauá e a bucha do canudo, dito zarabatana. Com infinita paciência, sem afeição nem desafeição nem um trisco de pensamento sobre a natureza das coisas, o nheengaíba esperava a vez e a hora de expedir a morte travar os passos do inimigo invasor e comedor de carne humana. Antão, era só um sopro, zás! Era pá e te aquieta na certa. Caia um, outro tropicava com a picada mortífera no lombo e o caraíba não via donde o feitiço havera saído: melhor carregar logo os mortos e voltar de carreira pra trás: caminho do feio é por donde veio...
assim andava aquela guerra de antigamente entre gentes da terra-firme e das ilhas, quando havera de aparecer pelo Norte os tais panaquiris (quer dizer homens brancos, holandeses), ditos hereges; querendo trabucar missangas em troca de pau de tinta e gados do rio. Que mal havia nesse comércio caído dos céus, ou melhor saído do alto mar? Os hereges até que não eram malvados como os cariuás, brancos malvados que só vinham para pegar gente e arrastar ao cativeiro com as tropas de resgate de escravos. Mas, bom! Veja lá se a gente era besta... Os hereges fizeram feitoria em Mariocai, que quer dizer casa de "faca", taberna de ferragens; onde a gente ia trocar coisas da terra pelas inglezias que os hereges traziam.
mas, "por Deus! Que gente feia essa! - Vovó Tapuia se escandalizava da maldade humana - a inveja é uma merda...". Os cariuá com inveja do comércio dos hereges e os caraíbas com inveja da fortuna dos índios das ilhas fizeram má companhia, "ajuntaram-se a tampa e o penico" a velha dizia, pra fazer maior a guerra que havera de existir desde antigamente no tempo da vela de jupati, paresque. Antão, o pessoal da terra-firme ao lado de cariuá armados de aracabuxá que cospe fogo e metidos a bordo de igarité grande tomou coragem e juntos uns e outros pintaram a saracura... Levaram os hereges debaixo de porrada até fora da boca do rio grande para as bandas do mar e os índios que eram amigos dos panaquiris pagaram o pato. Puta merda! Antão, mais que dantes ficaram de mal as duas bandas do rio. Até que chegou o padre grande, dito payaçu dos índios; com boas falas e o cacique dos Mapuás, chamado Piié; convidou os tuxauas da gente para ir conversar com tal payaçu e colocar termo naquela guerra velha que já tinha matado tanta gente quanto a cobra jararaca e o andaço das febres. Dito e feito! Acabou-se a guerra do Curralpanema, mas os cariuás não gostaram nadinha desta conversa.
mas porém, nem bem os padres tinham feito as pazes com os índios e povoado aldeias da missão com gente das ilhas e já os tais cariuás começaram com a senvergonice deles de antes. Deram-lhe porrada aos padres, paresque, e mandaram embora sem dó nem piedade. Já que faziam assim com os padres, "calcule tia Maroca o que eles não faziam com os índios!". Antão, os caciques se ajuntaram num ajuri de conselho a modo saber o que havera deles fazer sem os comerciantes hereges que deram no pé e sem os padres catequistas mandados embora. Disse o mesmo Piié dos Mapuás, "mea gente, a coisa tá feia... ainda bem que caruana me assoprou pra não jurar pela lei dos caruás: ficamos quites, caruá não nos deve nada; nada devemos aos caruás"... Se ele não disse, digo eu; emendou tio Vicente rezador com sua grande voz de orai pro nobis, que nem o velho Tupã do espingarito das nuvens anunciando chuva e trovoada. O certo é que morreu o rei e viveu o rei de Portugal (porque entre os cariuás tem essa estória da hereditariedade dos reis). Antão, se o rei velho disse por voz do payaçu que índio estava livre de peia e cativeiro, podendo ficar em paz nas ilhas onde nasceram; o rei novo deu o dito por não dito, aluou e entregou de mão beijado todo este vasto Curralpanema e o outro rio inclusive aos barões das sesmarias de Terras-Caidas. Égua, já pensou no que é azar da criaturada?
mas aí, a coisa fedeu e não prestou mais! Os caciques se enfezaram de vera, as velhas matintas e os pajés chamaram os caruanas para saber dos encantados o que, paresque, se havera de fazer em parelha situação. Vovó Tapuia quando não sabia do certo, inventava estória na hora e pedia amém do parente tio Vicente, "não foi, Vico?": tio Vicente rezador batia pronto, "foi tia Maroca". E sem se dar por achado aumentava um ponto. Aí, diz-que, os pajés sacacas pediram conselho ao caruana da cobragrande Boiúna do lago Guajará, dizendo a dita cuja, "deixa estar esta gente; cariuá não sabe com quem se meteu". Dito e feito. Cariuá meteu gado nos campos do Curralpanema, que se chamava ainda Igarapepuca, a modo com medo dos índios e dos pretos fugidos que se escondiam em mocambos lá pelos centros da jebre mais defesa aos estranhos. Mas porém quem havera de dar mais prejuízos às fazendas do que os índios do caritó, desertores e pretos fugidos, atoleiros nos balcedos, jacarés e cobras, todos juntos; foi o Boi Selado (desconforme bicho do fundo, da linhagem da cobragrande Boiúna). Em certas luas, o pingalho animal fantasma saiu do lago Guajará e levava a peste para o gado, quando o boi encantado aparecia nomeio da malhada era certo o estouro da boida; o gado arrebentava porteira nos peitos, arribava e ficava arisco. Virava gado do vento, rês orelhuda, gado sem dono...
este rio ou igarapé comprido, filhote da lenda do rio das amazonas; além de pegar praga pega diferentes nomes com facilidade. Qualquer um que venha cá e se engrace com alguma coisa em particular pode apelidar e logo o rio Curralpanema mudará de nome como cobra larga a pele... Desconjuro. Mas porém lhe asseguro que nos princípios do rio havera de ter nome próprio, que nem índio tem nome secreto. Não sabe? Índio toma nomes tantos quantos queira ou lhe dem por apelido, mas porém o verdadeiro só ele sabe com o pai, a mãe e o pajé da aldeia que o viu nascer. Ninguém mais. Se por azar um estranho ouvir o segredo fica sendo dono da sina do índio... Do mesmo jeito Curralpanema é apelido do rio que foi um dia Carapanaoca, Igarapepuca, paresque, rio da Fábrica outro dia... Um certo barão governador da província mandou os escravos dele cavar canal a braço... A braço! Já viu uma coisa estúrdia como esta? Pois foi: a braço de escravo abriu-se o Canal que virou rio do dito cujo e depois rio Canal simplesmente. Não sem antes um desconforme desastre que foi o desabamento do barranco em riba dos pobres escravos, mortos e enterrados no fundo do canal confronte ao sítio dito as Terras Caídas... Haja visagem no lugar: diz-que aquele gente era da costa da Guiné e por artes mágicas abriu outro canal pelo fundo deste que se vê nas Terras-Caídas, vara para o lago Guajará por um subterrâneo que faz furo para o sítio aonde o sol vai dormir no fim do dia. Quando a madrugada vence a pejeja com a Meia-Noite, paresque, o povo pega a carruagem de Guaraci (mãe dos vivente, o dito sol) e volta para o reino encantado da Mina (com a palavra dona Zulima, que ensina os mistérios à comadre Didi e não me deixa mentir).
tudo isto havera de ser um único e só Curralpanema cujo nome próprio não se sabe de jeito nenhum, dizendo tio Vicente rezador, que o último índio batizado pelo padre perdeu a memória de si mesmo e do rio de outrora. Ora, a vera estória é que este mundo nem das amazonas era antigamente. Enquanto Vilarana do Curralpanema, a vila que nem vila era, se surdiu na estória numa ponta de pedras na boca do rio confinante com a varja do compadre Manduquinha. Paresque era maloca de índio brabo das ilhas que foram amansados pelos padres da igreja de Nossa Senhora do Tempo, uma vez que já tinham os brabos aprendido padre nosso, ave maria e davam conta de rezar ladaínha; antão é que vieram da outra banda índios civilizados pelos ditos padres depois daquele antiga paz desfeita pelo rei maluco do reino de Portugal e, mais tarde, os pretos da capitania do barão, mais os brancos sesmeiros e seus brancaranas feitores com o gado e as inglezias todas.
antão, o tempo fechou... Dizendo tio Vicente rezador e contador d'estória que o tal batizado do rio Curralpanema deu caso de muita peleja entre índios, pretos e brancos. De primeiro, esta gente mais antiga se fizeram meigas porque os ditos padres vieram com boas conversas enquanto os brancos já duravam muitas luas de pura maldade trazidos armados de aracabuxá, a modo arcabuz; pelos índios caraíbas comedor de gente... Vovó Tapuia se lembra de ouvir a avó, lá dela; contar. Quando era estória de muito antigamente a velha tapuia espichava o tempo dizendo ela isto ou aquilo outro "era do tempo da vela de jupati"... Jupati paresque era uma senha: a dizer, bote tempo nisso! Pois era de muita antiguidade o tempo desta gente do Fim do Mundo.
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