sexta-feira, 27 de agosto de 2010

travessia da primeira noite do mundo

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… desde jitinho Quinquinhas ouvia a mãe e o pai contarem estórias das origens de Vilarana. Agripino falava da terra e queria ver o filho na marinha mercante, Adélia pelo contrário sonhava ver o pirralho no seminário para ser no futuro vigário da paróquia e não cansava de lembrar o além mar donde seus pais chegaram a fim de criar gado no Grão Pará. O moleque, entretanto, queria ser igual ao finado tio Mundico que seguiu a tradição de navegantes da família, prático de navegação do Amazonas e gostava de puxar conversa com Vovó Tapuia só pra ela falar da primeira noite do mundo. “Diz-que, antigamente, não havera noite – a velha repetia a mesma estória, pela fé das mil e uma noites de Vilarana; pitando cachimbo de barro de sempre – era um dia só de sol a pino que nunca se sentava pra dormir na terra”.

Égua! Já pensou? O povo pegado ao trabalho sem repouso nem nada, nem a lua aparecia uma vez sequer pra consolar a gente... Antão, houve um acontecimento formidável no Amazonas: a filha da cobragrande ia se casar e mãe lá dela resolveu dar de presente à noiva a primeira noite do mundo. O diabo é que a noite estava escondida dentro de um caroço de tucumã no fundo do rio. E lá foram três cativos da cobragrande buscar a noite: eles escutaram uma zoada estranha dentro do caroço e os três abelhudos, ardendo de curiosidade, cuidaram logo de rachar o tucumã pra ver o que havia dentro... “oh, por Deus! – disse a velha – deu-se uma desgraça e tanto pela afobação daqueles três despreparados”. Pois, através da racha escapou uma sombra medonha, paresque, que nem a caixa de Pandora, e os bichos da noite com a escuridão de súbito povoaram a terra de uivos, pios, coachos, gemidos, sono e pesadelo antes de dar tempo à gente pra ver na boca da noite o sol descer do céu e se deitar na rede encarnada do Araquiçaua...

Tio Mundico gostava muito de ouvir contos dos mais velhos pra inventar um ponto a mais e recontar a bordo durante horas ao curso de longos estirões do infinito Amazonas: o qual não se navega duas vezes, ainda que se faça centos de viagens rio acima e abaixo... O tio pegava navio estrangeiro na entrada da barra do Pará levava até Manaus e voltava com carregamentos de borracha e casos de marinheiro e namoradas de beira do rio de passagem por seringais e portos de lenha para atiçar a caldeira do navio movido a cavalos vapor.

Era este o movimentado ofício que Quinquinhas mais pedia a Deus, nada de vida devota de padre nem tédio de viagens transatlânticas: do velho mundo já lhe bastavam os antepassados do avô Afonso Galício, coitados, que serviram de bucha de canhão a aturar guerras sem fim dos monarcas... Quando calhava, tio Mundico vinha as ilhas e parava no Curralpanema a fim de rever a família de Vilarana. Antão, a melhor parte da viagem ficava em casa compartilhada com os parentes: haver de casos e novidades do grande rio que nunca se navega duas vezes, paresque; tão grande e vário como o vasto mundo.

Ouvindo o pai falar daquele seu finado irmão por parte mãe, Quinquinhas premeditava ser um dia também ele prático de navegação do rio Amazonas. Acordado ou dormindo o pirralho ia desenhando na imaginação o roteiro de viagem do tio Mundico Rodrigues. No fundo da rede, tarde da noite em silêncio com as sombras do quintal tisnando a folhagem do tamarindo parrudo, o pirralho às vezes escutava distantes sirenes de navio-vapor passando ao largo no misterioso Amazonas: era, será, o navio encantado com fantasmas a bordo?

Diziam em Vilarana que a ilhinha em face ao Fim do Mundo, em certas noites, se transformava em cobragrande ou navio encantado e assim vogava a ilha em riba da maré, da boca do Curralpanema pelo outro rio até o mar afora da ponta do Maguari. Vestígios da primeira noite do mundo, será?

Tio Mundico contava, outro dia ia ele a bordo de canoa à vela do vilar pra cidade grande a fim de pegar serviço do Loide, quando ao atravessar a baia, coisa mais ou menos de meia-noite, devido à hora que a maré deu pra largar do trapiche da vila que nem vila era, uns tantos quantos passageiros da igarité avistaram aquele paquete todo iluminado como um facho enorme luzindo em meio à escuridão. Coisa mui estúrdia, pois em vez do buque navegar por fora; no canal, como devia; o navio passava pela beira em riba do baixio de pedras. “Espera! – disse um espantado navegante a bordo da “Caripirá” – aquilo lá, paresque, é o tal navio encantado”.

O vento ventava, o mar zoava, banzeiro estrondava e o navio fantasma, paresque, se aproximando a todo vapor a modo vir cortar a proa da canoa. Na igarité, vela e bijarrona estufadas pelo vento terral o piloto chamado Parriba sem mais poder virar o leme e mudar a carreira sem perigo de meter a canoa ao fundo: tão perto ouviram-se música como de uma orquestra e vozes de muitas pessoas em festa a bordo do navio assombrado (física quântica, ufologia, universos paralelos!, diria o doutor Virgílio no bar do Emérito ao saber do relato, tempos depois).

Foi um espanto danado, dizendo o finado; quando passageiros e tripulantes com gritos presos na garganta viram o gaiola a ponto de abalroar a "Caripirá" e, num átimo no derradeiro instante do encontrão, tudo se dissipar diante dos olhos atônitos. O tio, sério, “desta vez eu vi o mistério a um palmo do nariz”... Não fosse o medo que corria solto no escuro pela copa das mangueiras e rondava pelas três ruazinhas da vila que nem vila era, toda vez que o pirralho escutava ao longe apitos de vapor altas horas da noite, ele se levantaria da rede puída em camisão para ir debaixo do pé de tamarindo espiar a beira do rio a ver se, por acaso, a ilhinha da Boiúna estava lá no devido lugar ou fora ela atravessar a baía ampliada pelo sonho e o espanto da primeira noite do mundo.

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